Villas&Golfe Angola
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Guilherme Mampuya 

«Em Angola, falta atrevimento na direção da cultura» 

PMMEDIA Pub.
Numa conversa descontraída, fomos conhecendo o mundo artístico de Guilherme Mampuya. Ele faz desenho, escultura e pinta sobre tela. E até em peças de porcelana podemos ver retratada a sua obra. O artista plástico tem obras espalhadas pelo mundo. Formou-se em Direito, na Universidade de Kinshasa, na República Democrática do Congo. Mas foi na pintura que se viu realizado. Nasceu na província do Uíge, viveu a sua infância entre Alvalade, o Bairro Popular e, mais tarde, em Viana. À V&G falou-nos das memórias desse tempo, do seu percurso artístico, da cultura em Angola e das exposições realizadas fora do país.  Representou Angola na Expo Dubai; e este ano vai estar na Art Basel Miami Beach. Com a pandemia surgiu a vontade de criar uma espécie de museu, no seu atelier, de forma que as pessoas possam ver antigas coleções, o seu universo, mas também o de tantos outros artistas nacionais.  
 
Onde começa a história do Guilherme Mampuya, no que toca à pintura? 
É uma história longa. Começa na minha infância. Na disciplina de Desenho era basicamente o melhor da sala. Obviamente lá surgia um ‘concorrente’, mas ao longo da fase escolar fui-me destacando sempre. Em Biologia tínhamos de fazer desenhos para o professor explicar a matéria e era eu quem desenhava. Entretanto, veio a faculdade. Ingressei em Direito. E nos períodos mais ‘calmos’ na sala de aula acabava sempre por pintar. Os meus amigos até me diziam que devia ir para Belas Artes.  
 
Mas nunca ingressou em Belas Artes? 
Não. Tanto é que no ano 2000 terminei a licenciatura em Direito e ,na altura, enquadrei-me como defensor oficioso no tribunal na República Democrática do Congo, onde estive um ano. Regressei a Luanda em 2001. Comecei a visitar alguns ateliers de arte e, em 2002, fui para um deles aprender os princípios básicos da pintura. Em 2003, comecei a trabalhar numa empresa como assessor jurídico. E esqueci a pintura. Mas o meu registo não era andar com fato e gravata, gostava de andar mais descontraído. Então, em 2006 dediquei-me à pintura. A minha primeira exposição na galeria UmbiUmbi foi um fiasco, não vendi nada, ninguém conhecia o Guilherme. Tirei as obras da galeria e coloquei no hotel Alvalade. Ali passavam pessoas de elite, que entendiam arte, e a verdade é que logo na primeira semana faturei 3,600 USD. A partir daí a minha arte começou a ser valorizada. Na altura, o Emídio Pinheiro, PCA do BFA, assumiu-se como um padrinho. Desde então a minha carreira já leva 16 anos.  

«Aqueles momentos de tristeza, de conflito e de conquista pessoal, isso tudo é fonte de inspiração» 
Nestes 16 anos já pintou um pouco de tudo? 
De tudo, mesmo. Quando comecei achava que a minha inspiração era focada em livros, lia muito. Lia muitos romances. Lia um romance, convertia-o em pintura. Depois a experiência mostrou-me que a vida tem outras coisas. Aqueles momentos de tristeza, de conflito e de conquista pessoal, isso tudo é fonte de inspiração. Observar a população, conversar, é sempre algo que ajuda. Isso foi bom para diversificar a minha abordagem. Achei que tinha de ser mais genuíno, vivendo na pele as emoções e os problemas do dia a dia, e passar para as obras esse sentimento.  
 
Quantos quadros já pintou? 
Perdi a conta. Antes tinha paciência para contar, depois, com o tempo, deixei de o fazer. Precisava de ter uma secretária para ter esses apontamentos (risos). A pressão social faz-te perder um pouco a noção do tempo, e passamos a produzir, produzir.  
 
Lembra-se qual foi o primeiro quadro que pintou? 
O meu primeiro quadro pintei em 2000. Foi um quadro experimental. Tinha 50 x 70 cm. Eram duas peças. Na altura, estava no atelier há seis meses, por curiosidade fui à praça, comprei o material e pintei. Depois levei as peças à praça do artesanato, coloquei-as no chão. Curiosamente, na mesma hora, foram vendidas.  

«O meu primeiro encontro foi com Salvador Dali. Gostava daquela mística, aquele surrealismo» 
Tem feito exposições? 
Sim, sim. De cinco em cinco meses fazia exposições. Amealhava dinheiro, ia para Bruxelas, e corria as galerias. Consegui em 2007 a primeira exposição em Bruxelas, a segunda, em 2008, depois fui para Lisboa, em 2009. Já estive em Macau, no Brasil, Amesterdão, já fiz exposições em muitos sítios. Representei Angola em muitas atividades fora do país, a última foi na Expo Dubai; a penúltima foi em Macau, no Festival da Lusofonia, das Artes. Este ano vou estar na Art Basel Miami Beach.  
 
E agora tem também um projeto pessoal em curso. 
Sim. É um museu que estou a desenvolver, em que as pessoas possam ver antigas coleções, fica onde eu vivo, no Zango, em Viana. Estou a transformar o meu atelier num espaço artístico. Comecei por viver lá, passados cinco anos criei o meu atelier, e agora quero transformá-lo num museu.  
 
Quando é que o museu abre ao público? 
O projeto do museu arrancou em tempo de COVID, no ano passado, e até final deste ano quero abrir ao público. O confinamento levou a que muita gente trabalhasse em casa e as pessoas como se viram com as paredes de casa sem vida, acabei por vender bem nesse tempo pandémico. E foi essa fase que me deu força para lançar esta ideia do museu.  
Como é que define a sua arte? 
É uma arte figurativa. Numa primeira fase quem me inspirou era muito fã de Salvador Dalí. Gostava daquela mística, aquele surrealismo. Picasso nem tanto, achava-o muito popular, e a arte dele não pedia muita filosofia. Já a arte de Salvador é mais profunda. Depois veio a arte Pop. Com tempo fui pesquisando, e cheguei aJean Dubuffet, o francês. A minha arte tem um pouco de cada um deles. Depois, tem muito a vertente africana, aquelas cores e aquela quentura não podem faltar. Vivo num continente quente e colorido, logo não há como fugir à alma do africano.  
 
O Guilherme teve em mãos o desafio de criar uma obra de arte para o espaço V&G,em Angola. Quer-nos falar desse quadro?  
A nossa sociedade é muito conservadora. Pensei num quadro festivo, um ambiente de euforia, com muita dança, loucura. Coloquei o Baco negro, umas senhoras alegres e o vinho como sinónimo de festejo, além disso, modernismo, sem muita ousadia, sendo que o quadro é um pouco ousado, pois são pessoas em fase de êxtase, pessoas deitadas no chão. 
 
E como olha para o setor da cultura e das artes em Angola? 
Teve os seus atrasos. Muito por causa das consequências da guerra. Quando o país obteve a paz, em 2002, as famílias tinham as suas prioridades: contruir casas, pagar as escolas aos filhos, comprar carro...uma tela não era prioridade. Entre 2006 e 2012 quem comprava arte eram os portugueses e os ingleses. A partir daí os angolanos também passaram a investir mais em arte. Agora o meu cliente é mais angolano do que português, por exemplo. Houve uma mudança, a aceitação da arte como património de uma casa.  

«A arte devia estar em vários pontos da cidade, porque a arte é uma história também do país» 
Vive exclusivamente da arte, da venda de quadros? 
Sim, vivo exclusivamente da venda dos quadros. Não me posso queixar. Mas requer disciplina, organização e confiança no que faço.  
 
O Estado devia apoiar mais o setor da cultura e os artistas?  
Devia apoiar mais. O problema que existe em nações como a nossa, que vive muito bem do seu petróleo, é que nem todos os funcionários da cultura têm o seu salário indexado no Orçamento do Estado. Temos tanto dinheiro que sai do petróleo... e as conversas sobre a cultura e o turismo não passam disso, de conversas. Se fôssemos um país como Portugal, que precisa do turismo, em grande parte, apoiar-se-ia muito mais a cultura. A arte devia estar em vários pontos da cidade, porque a arte é uma história também do país. Paris sem o Louvre não era a mesma coisa. O que me levou a ir a Paris foi a Mona Lisa. Já tinha lá estado em criança, mas não entendia, tinha 10 anos. E o que me levou, em 2014, a voltar foi a Mona Lisa, a Torre Eiffel, o Arco de Triunfo, são estes marcos históricos que nos ficam. Em Angola, falta atrevimento na direção da cultura. Foi-nos permitido um museu de arte moderna. É o que estou a tentar fazer com o meu espaço, criar um museu, não quero ser conhecido, mas é para pegar em artistas como Neves e Sousa, que foi um grande artista, e ter peças dele lá, assim como de outros artistas. Eu, Guilherme, quero criar um espaço onde possa ter vários artistas expostos. Neste museu, quero que as pessoas possam viver a história do artista.  
 
Onde nasceu e passou a sua infância? 
Nasci no Uíge, depois viemos viver para Alvalade. Depois mudamo-nos para o Bairro Popular. Em 1986, mudamo-nos para Viana. Estudei 12 anos na Escola Congolesa. Fui estudar para o Congo em 1994, concluir o 12.º ano. E em 1995 comecei a faculdade, também no Congo.  Regressei a Angola no ano 2000. Sobre a minha infância estamos a falar de um país que estava em guerra. Havia felicidade, sim, era a inocência da infância. Tenho memórias boas dos meus pais, do primeiro namoro, as idas para o Mussulo, para o Barra do Kwanza. Essas lembranças continuam. Tive um pai muito autoritário [O pai faleceu em 2022], para ele todos os filhos tinham de fazer faculdade. Eramos seis irmãos. Tenho três filhos.  

Maria Cruz
T. Maria Cruz
F. Edson Azevedo