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Nacissela Maurício

«A sociedade tem resistência em aceitar que as mulheres conseguem ser mais do que domésticas»

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À conversa com a V&G juntou-se a antiga jogadora internacional de basquetebol, Nacissela Maurício. Com os seus 1,86 metros e talento inegável, conquistou o coração das cidades e países por onde passou. Alcançou campeonatos africanos das Nações, tendo sido considerada por duas vezes MVP (jogador mais valioso). Participou nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres, e no Campeonato do Mundo em 2014. Mas mais do que isso, Nacissela é mulher e cidadã do mundo e, pelos seus feitos, foi distinguida como Embaixadora das Nações Unidas contra a sida. A ex-jogadora é mãe, filha e mulher e é a desempenhar essas funções que vê passar o seu futuro. 

Fale-nos das suas origens.
Sou natural de Angola, mais especificamente Luanda, tal como os meus pais e os meus avós paternos e maternos. 

Como e com que idade começou a descobrir o talento para o basquetebol? A reação da família foi, desde logo, positiva?
Tudo começou numa aula de Educação Física, quando o professor fez o convite a mim e a um grupo de alunas para jogarmos. Tinha 11 anos e fui a partir daí que começou a nascer o «bichinho» pelo basquetebol. Entre muitas, eu fui das que vingou e fez carreira. Ao princípio, a minha família não reagiu bem, uma vez que pensava que o desporto me distraía e me colocava em convívio frequente com rapazes. Ainda assim, foi uma altura importantíssima para me tornar na atleta Nacissela. Acabei por ter o apoio fundamental da família. Sem isso, não teria conseguido atingir as minhas vitórias. 

Como descreve a Nacissela Maurício nos tempos de jogadora profissional?
Eu descrevê-la-ia como alguém muito destemido e capaz. Apesar das imensas adversidades que ultrapassei ao longo da minha trajetória desportiva, nunca desisti de mim nem do meu propósito.  

«As pessoas pensam que o desporto é algo destinado apenas aos homens»

Quais foram os clubes que já representou?
O clube angolano Maculuso foi onde comecei a jogar. Depois, passei pelo Clube do Povo de Esgueira, em Aveiro, Portugal; mais tarde, pelo Vetusta, Ponce de Leon e Badajoz, em Espanha, por um período de sete anos; e terminei o meu percurso em Luanda. 

Quem são os seus ídolos no mundo do basquetebol?
Michael Jordan, Kobe Bryant e Miguel Lutonda. 

Recorde alguns momentos mais marcantes da sua carreira desportiva.
Um dos momentos mais marcantes foi em 2013, quando me sagrei campeã africana, pela primeira vez, e em simultâneo MVP. Outro foi a classificação para o Mundial. Estar naquele estádio do Maxaquene, em Maputo, lotado de milhares de pessoas, aos meus 31 anos, na qualidade de capitã da equipa e com a responsabilidade que tinha, foi dos momentos mais altos e marcantes da minha carreira. Um verdadeiro misto de emoções.

«Seria importante criar mais harmonia entre a escola e o desporto»
E os mais frustrantes?
Um deles foi no Madagáscar, numa meia-final. Faltavam 15 segundos para terminar o jogo e a posse de bola era nossa, mas perdemos a bola e o jogo, quando eu já festejava a vitória. Terminei a partida em lágrimas, arrasada. Nesse ano, de 2009, teria obtido o meu primeiro título africano... mas terminamos em 3.º lugar. A segunda vez foi numa liga dos clubes campeões, em que sucedeu a mesma situação. A posse de bola era nossa e, a faltarem segundos, a jogadora do Inter Clube rouba a bola e finaliza, terminando o jogo com vitória para a equipa adversária. Foi uma outra derrota amarga, que me marcou para o resto da vida! 

Ultrapassou o desafio da maternidade enquanto ocupava o cargo de chefe da delegação angolana no Campeonato Africano de Basquetebol Sénior Feminino. Considera que, hoje, ser mulher é mais exigente do que nunca?
Com certeza, visto que, atualmente, as mulheres são mais emancipadas. Temos cada vez mais autonomia sobre as nossas vidas e carreiras, tornando-se tudo mais exigente. Antigamente, não nos era permitido exercer funções que já se exercem hoje, e isso deve-se à luta constante das mulheres pela igualdade de género, conseguindo ganhar maior representatividade na sociedade. 

Num meio masculino como é o do basquetebol, alguma vez se sentiu vítima de preconceito ou discriminação?
O problema começa a partir do momento em que as pessoas pensam que o desporto é algo destinado apenas aos homens, quando nem se apercebem de que são afirmações discriminatórias. Durante toda a minha vida ouvi comentários dessa espécie, isto porque a sociedade tem resistência em aceitar que as mulheres conseguem ser mais do que domésticas. 

Os clubes angolanos apostam o suficiente na modalidade feminina? 
Sou da opinião de que os clubes angolanos não apostam o suficiente na modalidade feminina, nem mesmo os investidores. Creio que se deve ao número reduzido de equipas e à pouca atração que se gerou durante um determinado período até à atualidade, permitindo que o basquetebol feminino fosse, se assim o podemos dizer, «posto de parte». 
Em Angola, há potenciais «CR7» versão feminina no mundo do basquetebol?
Acredito que sim. Não digo alguém específico, pois o futuro é cheio de incertezas, porém são várias as atletas do escalão de formação que têm bons indicadores de o conseguir, caso exista uma contínua melhoria do investimento e da persistência, tanto de quem investe, seja clube ou outra entidade, como da própria atleta.  

Em que é que se deveria investir para dinamizar mais a modalidade no país?
Investimento em capital físico e humano, nomeadamente, na formação académica e desportiva da equipa técnica e atletas, assim como nos materiais de treino e jogo como, por exemplo, campos de basquetebol, bolas de qualidade, fornecimento de botas adequadas, de forma a evitar lesões indesejadas, entre outros. Seria importante criar mais harmonia entre a escola e o desporto, de modo que nenhuma parte pudesse sair prejudicada. Apostar na integração de mais equipas nos campeonatos, existir um maior patrocínio/investimento por parte das empresas do setor público e privado e programar um maior tempo de antena para o desporto na Televisão Pública de Angola. Igualmente crucial seria o investimento em marketing digital, divulgando as estatísticas de cada atleta e dos respetivos campeonatos numa plataforma digital específica, assim como uma exposição dos jogos via online, através de lives em aplicações como YouTubeInstagram e Facebook...  

O futuro da Nacissela passa por...
Conseguir superar-me a cada dia, como mulher, mãe, colega de trabalho e empreendedora. Dar o melhor de mim em tudo o que faço.

Celebramos o 13.º aniversário da revista Villas&Golfe, em Angola. O que representaram para si, estes últimos anos na sua vida e no país?
Nos últimos 13 anos, a nível desportivo, consegui alcançar o ponto auge da minha carreira. Evoluí em todos os sentidos. Durante esse período ainda tive o meu pai aqui presente e também me foi concedida a bênção de ser mãe, novamente. 
T. Joana Rebelo
F. Edson Azevedo