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Noelma Viegas D’Abreu

«Angola evoluiu, mas a uma velocidade relativamente mais lenta do que seria desejável»

PMMEDIA Pub.
Natural de Luanda, filha de mãe do Cuanza-Sul e pai de Benguela, Noelma Viegas D’Abreu é hoje resultado das suas vivências. Admite relembrar os seus tempos de infância a partir do pé de café que plantou no jardim, em memória da sua avó, fazendeira de café. A angolana explica que a adolescência foi «sem grandes sobressaltos» e com «histórias engraçadas», mas a partir dos 17 anos tudo mudou. Os estudos foram ocupando o centro da sua vida e, anos mais tarde, licenciou-se em Psicologia, com especialização em Psicologia Clínica. Sempre com vista a melhorar a vida das pessoas, Noelma resolve dedicar-se a uma outra abordagem, ocupando, atualmente, o cargo de administradora executiva da Academia BAI.

Sabemos que é natural de Luanda. Fale-nos das suas vivências e lembranças de infância/adolescência.
Sou natural de Luanda, filha de mãe do Cuanza-Sul e de pai de Benguela. Sou neta de fazendeiros de café e, embora não sejam longas, as memórias são muito boas e permitem-me tanto uma sensação de infância feliz como o desejo de preservar o cheiro do café. Já por isso plantei um pé de café no meu jardim, em memória da minha avó. Às vezes, acho que muitas das memórias são mais contadas do que vividas.
Relativamente à adolescência, foi uma vivência normal, sem grandes sobressaltos, mas com histórias engraçadas de convívios em grupos e idas a festas de quintal. Era levada pelo meu pai ou por alguns dos pais de amigas. Eles tinham de se revezar para nos levarem às festas, pois não havia táxis, Uber ou transportes públicos para nos deslocarmos. Além disso, ainda havia recolher obrigatório, isto é, um horário de proibição de circulação nas ruas, sendo apenas permitidas exceções a quem tivesse um livre-trânsito. Deste modo, só alguns pais podiam circular, acabando por serem esses os encarregados de ficarem acordados para nos irem «recolher». Mais tarde, fui viver para fora, aos 17 anos, e tudo mudou. O objetivo era estudar e, de facto, com a devida dedicação, consegui alcançar o meu desejo e o resultado que os meus pais esperavam.

Sempre gostou de ouvir histórias. Foi uma das razões que a levou a seguir Psicologia Clínica?
Gosto de ouvir e contar histórias, mas também gosto de as ler e, de facto, comecei a ler desde muito cedo. Interessava-me pelas histórias das famílias antigas e assuntos da sociedade, e claro que os livros brasileiros de Jorge Amado e José Mauro de Vasconcelos podem ter contribuído para o crescimento da curiosidade e da vontade de perceber alguns acontecimentos da vida. Mas a razão para a escolha da Psicologia Clínica teve que ver com uma curiosidade muito precoce de querer entender os comportamentos das pessoas, as suas angústias, frustrações e medos. A isto alio outra característica em mim, que é uma vontade grande de melhorar a vida das pessoas. Então, essas são as motivações que, naturalmente, fazem com que hoje continue a querer contribuir para essa melhoria. Mesmo não exercendo clínica há mais de dez anos, procuro ser útil na prossecução da melhoria, por via da educação. Assim, cheguei à consultoria e gestão de recursos humanos e à gestão de empresas, onde me enquadro hoje. Enquanto gestora, aproveito muito do que aprendi em Medicina e em Psicologia Clínica, pondo-me ao serviço da gestão, sobretudo na gestão da relação entre as pessoas nas organizações. De qualquer modo, para poder gerir, tive também de fazer um percurso muito dedicado à aprendizagem da gestão estratégica de empresa, contabilidade e finanças. Aliás, tive de fazer formação mais diferenciada nesses domínios, senti necessidade. 

Exerceu Psicologia em Portugal e em Berlim. Depois, decidiu seguir para Luanda. Notou alguma diferença na recetividade a essa área por parte dos angolanos, em comparação ao exterior?
Creio que fui surpreendida por duas grandes diferenças. Uma relacionada com a solidariedade e altruísmo magnânimo, de amigos que se juntaram para apoiar pessoas amigas a fazerem psicoterapia. Nunca tinha visto tal coisa a acontecer noutro contexto; apenas me apercebi desse apoio, nos outros países, em contexto muito restrito de família nuclear ou até de organizações não-governamentais, como aquela em que trabalhei em Berlim. A outra diferença, mas menos positiva, foi o encontro com pacientes em lugares públicos e perceber a dificuldade destes em lidar com a situação, quase como se estivessem em falta. Neste último caso, acredito que seja o receio da divulgação ou da falta de sigilo a maior preocupação entre nós. O sigilo e a preservação do segredo profissional são basilares, pelo que este deve ser um cuidado e um dos principais valores dos profissionais da área, visto que devem zelar pelas pessoas de modo que confiem e se sintam seguras. Só assim o psicólogo clínico pode ajudar de forma efetiva e ser valorizado. No geral, foram sempre experiências diferentes nos diversos contextos de países e sociedades, mas muito gratificantes. Gosto imenso do exercício de clínica. Embora tenha um desgaste emocional muito grande, fui muito feliz sempre que fiz bem aos outros.

«É necessário elevar a educação ao nível de uma masculinidade positiva e de uma paternidade consciente»  

Atualmente, as doenças mentais ainda são tabus?
Penso que já não tanto como foram no passado, mas, ainda assim, continuam a ser difíceis de aceitar e de lidar para algumas pessoas e famílias que preferem não assumir que existem e são reais. Para muitos, no que concerne a dependências químicas, desde o alcoolismo à toxicodependência de drogas pesadas, é custoso porque acham que podem não ser aceites socialmente. Estes são temas aos quais não estamos a dar a devida atenção e o assunto é muito sério e grave. De resto, a medicina psiquiátrica e a psicologia clínica evoluíram muito e há recursos muito bons. Não podemos esquecer que se deixaram de fazer os internamentos que se faziam no passado, sendo substituídos por medicação e psicoterapia que libertou os doentes mentais dos ditos manicómios. Contudo, em países como o nosso, onde há um inconsciente coletivo com memórias de guerra e traumas tão profundos, a saúde mental deve ser uma preocupação digna de dedicação especial, ao nível mais alto, quer na criação de políticas que possam suportar a criação de soluções, como centros de apoio, quer na formação de profissionais para servirem em áreas-chave a sociedade.

Os valores da sociedade angolana têm sofrido mudanças? Se sim, de que forma?
A nossa sociedade tem vivido momentos conturbados, desde a guerra à deslocalização de famílias, transumância das populações e ao aumento da população de forma acentuada e descontrolada. Estes aspetos têm forte impacto na sociedade que temos atualmente. Todos são aspetos a ter em consideração. Precisamos de dar uma séria atenção à harmonia, saúde psicológica e enquadramento social das famílias. A transmissão de valores exige coerência, consistência, muita dedicação e afetos positivos. Ora, mudanças têm sido vivenciadas em todos os lugares, o mundo tem mudado de forma acelerada e dificilmente a velocidade irá abrandar. O mais importante para mim não é a mudança, mas sim o que está a mudar, como está a mudar e como estamos a saber lidar com elas na nossa sociedade. Precisamos de perceber se as mudanças nos têm trazido benefícios ou apenas o caos. É muito importante que consigamos entender e valorizar a importância do sentido de pertença forte, dos egos equilibrados, das emoções bem geridas e o respeito pelo próximo, com crenças que estimulam o desenvolvimento e objetivos ponderados e coerentes. 

Ainda que continuando a lidar com pessoas, a Noelma adapta-se a um outro contexto, gerindo, hoje, a Academia BAI. O que é que a Academia dá à comunidade angolana?Gostamos de acreditar que é o lugar onde se dá e partilha conhecimento. Se cada uma destas pessoas que veio, escutou, participou, levou para sua casa um conceito, uma experiência, uma capacidade de questionar «verdades», interiorizou o que foi transmitido e, a seguir, partilhou, então influenciamos outros tantos que estão nas suas casas. Assim, indiretamente, disseminamos o conhecimento, potenciando a máxima de Mandela: «A educação é a melhor arma para mudar o mundo». 
Jim Collins, Professor americano da Universidade de Stanford e estudioso de comportamentos de grandes empresas, no seu livro Good to Great afirma que «não temos escolas ótimas, principalmente porque temos boas escolas. Não temos um governo excelente, sobretudo porque temos um bom governo. Poucas pessoas vivem vidas ótimas, em grande parte porque é mais fácil construir uma vida boa... A grande maioria das empresas não se torna excelente, só porque já é bastante boa – e este é o principal problema.» Extrapolando esta abordagem para Angola e, particularmente, para a Academia BAI, procuramos ser mais do que um bom projeto e sim uma instituição que privilegia a qualidade como uma condição natural, uma característica, uma cultura e um «ethos» que nos distingue dos outros. Perseguimos objetivos com um foco permanente na qualidade e podemos salientar que esta filosofia ou cultura da organização é válida, quer para o bem-estar interno, quer para a forma como servimos os nossos clientes. Temos certificações de qualidade como o Great Place to Work e a ISO 9001. A principal preocupação que temos é o desenvolvimento de competências para ajudar a criar líderes e sucessores com uma visão, uma estratégia e imbuídos de um sentido patriótico, de compromisso, rigor e princípios e, portanto, capazes de contribuir para que as empresas, as organizações e o Estado sejam mais eficientes, competitivos e, consequentemente, para que o nosso país se torne num lugar com mais pessoas educadas, qualificadas, éticas e com boas práticas de gestão e de utilização otimizada dos recursos, para garantir um desenvolvimento sustentável.

E quais os planos futuros da Fundação e da Academia BAI?
Quando questionamos colaboradores e outros stakeholders, estes acabam por considerar que a Academia é feminina. Acreditamos que sim, a fecundidade que se traduziu em tantas realizações e crescimento é feminina. Quando falo de feminilidade é no sentido da continuidade da vida que todos conhecemos. Felizmente, isso traduz-se no que colaboradores e outros stakeholders reconhecem como a jovem maturidade de uma organização que implementou, desenvolveu ações e concretiza todos os dias exercícios para reduzir e eliminar formas de discriminação, desde a paridade de género, diversidade de etnias e nacionalidades, assim como a aceitação, respeito pela orientação sexual e respeito pelas diferenças. Espero que este «Ser», chamado Academia BAI, continue a dar vida, luz e alma ao conhecimento, seja não só guardião de livros e de sonhos, mas também perseguidor do bem-estar, do bom clima organizacional, de boas práticas e ideias inovadoras e da procura incessante de transformar vidas, por via da formação técnica e comportamental, da qualificação académica e da cultura, para que estas, por sua vez, transformem bairros, cidades, a sociedade e a economia. Tendo por base este princípio, que representa também a possibilidade da continuidade da vida e da sucessão natural, o que até aqui se construiu poderá continuar com outros, em funções críticas e funções que permitam que a Academia BAI seja efetivamente vida e prevaleça muito para além destes dez anos já percorridos. Por esse motivo, não ficaremos « prisioneiros» das realizações, mas precisamos de manter o olhar orientado para a frente e traçar objetivos, assumindo «um compromisso com o futuro», com as pessoas, a educação, Angola, a lusofonia e o mundo. 
Hoje, temos também a responsabilidade de gerir a Fundação BAI. Este carater fundacional que assumimos leva-nos a ter de desenhar uma estratégia que contribua para o alcance e promoção de maior bem-estar social e que sirva para transformar vidas por via da educação, sendo os nossos pilares de atuação justamente a educação, cultura, saúde e o desporto. Neste sentido, a nossa visão é ser uma instituição de referência, contribuindo para a construção de uma sociedade justa e solidária, disseminando valores de cidadania ativa, de consciência coletiva e de inclusão.O nosso lema é de compromisso com o futuro, pois somos a «Academia BAI, uma academia de vida e para a vida».

«Inquieta-me a falta de emprego e a consequente pobreza e desigualdade social»

O que a motivou a escrever o livro Entre Sonhos e Delírios?
Ter coisas para partilhar e a memória da recomendação recorrente. E, também, a influência de uma boa referência para mim, traduzida em altruísmo e sabedoria. Falo no Monsenhor Cachadinha, o antigo Diretor da Biblioteca da Universidade Católica, onde trabalhei por alguns anos como professora, mas, também, como Diretora Executiva do Centro de Estudos e Investigação Científica. Ele foi das pessoas que mais vezes me disse: «Noelma, artigos e textos publicados em revistas e jornais perdem-se na história, pois são datados e deitamos fora a revista daquela semana ou mês. Os seus artigos não se podem perder dessa forma». Então, depois de bastante ponderação, achei que era tempo de deitar mãos ao trabalho, organizá-los de modo a fazerem sentido, criando um fio condutor. Decidi compilar, pelo menos, um conjunto deles. Mas tenho muitos.

Esclareça-nos, onde acaba o sonho e começa o delírio?
O sonho manifesta-se como arte ou exercício de guardar o sono, mas também como desejo de realização de sonhos, que, quando bem «sonhados», quando têm um bom conceito, fundamento e se envolvem as pessoas certas, conseguem ser implementados. O delírio é a fuga à realidade. O meu livro, na verdade, espelha o crescendo das temáticas, pois foram organizadas evoluindo das neuroses para as psicoses e são estas que representam a fuga à realidade. Então, começo com artigos relacionados com a própria história da psicoterapia, as suas práticas, ética deontológica dos psicoterapeutas e metodologias utilizadas. Passa, portanto, pelas perturbações psicológicas mais neuróticas, temas existenciais e termina com um artigo sobre o suicídio. Foi um trabalho muito gratificante porque, para escrever os artigos, tive de ler ou reler muitos livros, não só técnicos, mas também de literatura. Utilizava como exemplos ou ilustração de sintomas algumas personagens da literatura e de histórias de livros. Ao escrever sobre incesto, por exemplo, utilizei as personagens dos Maias, de Eça de Queiroz – Maria Eduarda e Carlos Eduardo – para abordar o tema da angústia, frustração e maldade. Enfim, são mais de 300 páginas que permitem uma viagem pela literatura e pelo mundo da psicologia.

Enquanto mulher angolana, o que considera não ter sido feito para minorar os efeitos da desigualdade de género?
Considero que ainda temos um trabalho árduo em domínios como a luta pelo planeamento familiar, assim como a gravidez precoce e gravidez não planeada e indesejada, que causam morte, doenças e potenciam a diminuição de frequência escolar e a pobreza. Por outro lado, a violência doméstica contra as mulheres, a violação de menores e a penalização séria dos autores destas práticas. Também é necessário elevar a educação ao nível de uma masculinidade positiva e de uma paternidade consciente.
Considero que a paridade de género, já representativa em órgãos decisivos do Estado, é muito importante, e tenho esperança de que represente maior atenção e ações na solução dos problemas referidos anteriormente.

O que a inquieta relativamente ao futuro do país e do mundo?
Inquieta-me a falta de emprego e a consequente pobreza e desigualdade social, assim como a necessidade de mais educação, mais formação, mais capacitação de quadros e a sua inclusão nos lugares certos para a promoção do desenvolvimento económico e social. Angola evoluiu, mas a uma velocidade relativamente mais lenta do que seria desejável e do que precisamos. A população de Angola está a crescer de forma exponencial. A nossa taxa de fertilidade está entre as mais altas do mundo, mas a nossa capacidade de produção e de autossustentação alimentar e os principais índices de desenvolvimento continuam nos mais baixos do mundo, quando os nossos recursos naturais são dos mais elevados. Então, significa que ainda não fomos capazes de trabalhar estes recursos e de os pôr ao nosso serviço, beneficiando toda a sociedade. Mesmo quando tivemos taxas de crescimento elevadas, os recursos não foram eficientemente investidos, não tendo havido a tão desejada diversificação da economia. 
Inquieta-me também a falta de informação de qualidade e o papel da desinformação que as redes sociais têm vindo a desempenhar no nosso país. Fomentam a intriga e a difamação; maltrata-se e vilipendia-se, sem qualquer consequência legal ou criminal, o bom nome das pessoas. Este é mais um aspeto educacional, de gestão da informação e dos dados pessoais e de segurança, que me preocupa e que considero que temos de saber cuidar melhor.

Celebramos o 13.º aniversário da revista Villas&Golfe, em Angola. O que representaram, para si, estes últimos anos na sua vida e no país?
Para a minha vida, representaram anos de aprendizagem de muitas matérias e de experiência de vida, de crescimento e de maturidade, assim como de contribuição social para o desenvolvimento das organizações em que trabalhei. Para o meu país, também considero que foi de evolução em vários sentidos, desde o seu crescimento às mudanças significativas, mas ainda aquém do que necessitamos e da velocidade que seria desejável. Contudo, mantenho a esperança na preocupação com o bem comum e que, cada um, possa diariamente contribuir para a melhoria da vida dos angolanos. 
T. Joana Rebelo
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