Villas&Golfe Angola
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Elizabeth da Graça Isidoro

«Sempre acreditei que conseguiria fazer algo pelo meu país»

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O Grupo COSAL reúne empresas que vão desde o setor automóvel ao turismo e é, certamente, o maior conjunto empresarial privado em Angola. No comando está Elizabeth da Graça Isidoro, uma mulher afetuosa, de personalidade forte, nascida em Camacupa, província do Bié, muito antes da Independência. Até chegar a empresária, passou parte do tempo no Huambo, onde assistiu e experienciou os maiores confrontos bélicos que aconteceram no país, vivendo os dias como se o amanhã não acontecesse. Mãe de três filhas e avó de sete netos, sabe o nome de todos os seus colaboradores, estando sempre presente na vida de cada um, deixando em todos memórias inesquecíveis. Numa entrevista de vida à Villas&Golfe, a empresária, que nunca equacionou deixar Angola, conta-nos alguns momentos que são também parte da história deste jovem país do continente africano.

O Grupo COSAL foi fundado numa época difícil em Angola...
O Grupo COSAL, como o conhecemos hoje, teve início em 1982. Surgiu porque eu trabalhava no Banco de Poupança e Crédito e, como estava requisitada para o Ministério do Comércio, decidi fazer uma empresa privada. Foi a primeira, nestes termos, em Angola, após a Independência. Naquela época, ter autorização para tal era muito difícil, até foi a Conselho de Ministros, e creio que o Governo autorizou por ser uma empresa que estava sediada e nasceu no Huambo, que era uma região muito complicada, pois estava em guerra constante entre a UNITA e o MPLA. O acesso tinha de ser aéreo porque terrestre não existia. E assim juntei-me ao meu irmão Luís Isidoro, que ainda está na empresa, ao Armando Augusto Machado, que fazia parte da antiga COSAL, mais o José Manuel Daniel e o Amaro Serrano que acabaram por sair, porque voltaram a Portugal. Em 1992, entram para o Grupo o Jaime de Freitas, o José Junça, o Augusto Meireles e o Manuel Costa. No entanto, atualmente, a COSAL tem como únicos sócios: eu, o Jaime de Freitas e o Luís Isidoro.

O nome da empresa tem algum significado?
Eu fundei a nova COSAL a partir do zero e o nome acabou por ser por uma questão de facilidade, uma vez que já tinha existido no tempo colonial, mas a empresa foi confiscada pelo Estado. Nesse tempo, COSAL era Costa e Almeida, o nome dos que, em conjunto com o meu ex-marido, iniciaram a empresa. Ele, por simpatia a essas pessoas, pediu para que ficasse e ficou. Mas a designação passou a ser mais tarde Comércio e Serviços de Angola. O nome nunca teve significado para mim, mas como já era conhecido a nível internacional como empresa de importação, mesmo tendo desaparecido, manteve-se nos estatutos e, ao voltar noutra época com o mesmo nome, perante as marcas foi mais fácil trabalhar. Mas, na verdade, a COSAL passou a ter visibilidade no mercado angolano, dando os seus maiores passos para a sua consolidação, após a representação da marca Hyundai em Angola, que serviu de base à representação de outras marcas que se seguiram.

Antes da Independência o que importava a empresa?
Era a Fiat e a DEUTZ, nos tratores e máquinas agrícolas, essencialmente eram marcas italianas e alemãs e também todos os componentes, não só dessas marcas, como também de outras. No fundo, o forte da COSAL eram peças e acessórios, e como eu sempre gostei muito de carros, acabou por ser esse também o setor da nova COSAL.

Mas só em 1992 começam as importações.  
Sim, foi quando o Estado aprovou, tínhamos acabado de entrar na Economia de Mercado e começaram a ser permitidas importações. Antes, recebíamos todo o material através da central do Estado, a ABAMAT, as empresas só tinham direito a uma cota, em peças e acessórios, e no que diz respeito a viaturas automóveis era quase nada.

«Temos de ultrapassar problemas todos os dias e seguir em frente»

Como era nesse tempo ter uma empresa privada em Angola?
Era muito difícil, mas também nada aqui tem sido fácil. Hoje em dia, os problemas mantêm-se, embora de outra ordem, mas estamos no mercado, temos de nos adaptar, ultrapassar e continuar. A COSAL tem agora 1500 trabalhadores, formados por nós, e sei o nome da maioria deles. Está em seis províncias com várias marcas e valências, por isso o caminho só pode ser andar para a frente, há muitas responsabilidades, pelo que temos de ultrapassar os problemas. Em termos de marcas de veículos automóveis representamos a Mercedes, a Fuso, a Mitsubishi e a Hyundai. Esta última foi a que alavancou todo o negócio. Fui à Coreia do Sul buscá-la, em 1992.

Qual foi a razão de ter optado por uma marca sul-coreana?
Decidi ter uma marca automóvel que não estivesse no mercado e optei pela Hyundai. Em Angola, só era conhecida pelos componentes para computadores, e um amigo, o Armindo Ornelas, tinha-me dito que a marca tinha tudo para ser uma referência no mercado automóvel. Então, fui à Coreia do Sul negociar. E como eles quase não tinham representação no exterior, ao aparecer alguém interessado, não hesitaram, e recebemos em Angola os primeiros carros.

Podemos dizer que foi uma negociação coroada de êxito?
Acabou por ser, embora no início eles pensassem que eu estava ali por motivos políticos, devido ao meu passaporte, porque Angola era mais chegada à Coreia do Norte. Foi difícil convencê-los de que só estava interessada em carros, fiquei um dia retida no aeroporto, depois libertaram-nos e fomos para o hotel Hilton em Seul. Nesta epopeia, fui acompanhada e bem assessorada pelo doutor Lago de Carvalho e pelo engenheiro Manuel Aguiar, que ainda trabalhou connosco muitos anos. No dia seguinte, fui recebida pelo vice-presidente da Hyundai, filho do fundador da marca, que estava a concorrer às eleições do país. Ele fez questão de me receber e até jantámos. E ficou muito admirado por ser mulher. Naquele tempo, na Coreia do Sul, os homens caminhavam sempre à frente das mulheres, eu brinquei com isso e disse-lhe: «Eu vou à frente». E foi assim, com a Hyundai, alavancámos outras marcas e outros negócios.

E direcionaram-se para a hotelaria e turismo...
Foi de uma forma inexplicável, fui literalmente empurrada. Depois de um terreno andar para trás e para a frente com a Sonangol, acabámos por negociar com a petrolífera e ficamos com o espaço, onde hoje são as oficinas da Hyundai e o hotel da Samba (já lá havia uma pequena unidade hoteleira). A minha filha Andrea sempre gostou muito de hotelaria e foi-me incentivando, e eu cedi. Num negócio de ocasião, comprámos no Mussulo a Roça das Mangueiras e também fizemos o restaurante Embarcadouro, isto já no início do novo século. Já tínhamos pensado em ter uma alternativa à venda e assistência de veículos automóveis e embarcações, e o setor de hotelaria, turismo e restauração acabou por se encaixar.

«Com a Hyundai, alavancámos outras marcas e outros negócios»

Mas ainda têm um pequeno paraíso no Lubango, que representa três países.
O Pululukwa está na província de Huila e quando o fizemos foi para o testar em termos de capacidade de alojamento. Ali temos 60 casas de modelos diferentes: há umas alusivas à Ilha da Madeira, porque os antigos donos, de uma parcela do terreno, eram de lá. Há outras, que são as nossas Kimbos; e há também uma homenagem à África do Sul com as casas Zulus. O resort está inserido num espaço de cerca de 500 hectares.

Está sempre em movimento e cheia de garra, dizem que é pela história do seu nome, é verdade?
Pode ser, a minha mãe era muito amiga da médica Elizabeth Bridgeman, uma mulher cheia de convicções, e eu acabei por ter o nome igual. Eu lidava muito com ela, entre os meus 5 e 7 anos, tenho imensas recordações desse tempo. Ia com ela ouvir as suas declarações políticas. Foi das pessoas mais perseguidas pela PIDE. O meu pai pertencia ao Partido Comunista Português e a minha prima era secretária do Álvaro Cunhal, por isso acabei por nascer e viver numa família de contestatários. Em 1948, o meu pai veio a Angola fazer o levantamento topográfico e, quando selecionaram o Centro Geodésico de Angola, nas imediações do aeródromo de Camacupa, província do Bié, ele decidiu ficar ali, a família aumentou, nasci eu e o meu irmão mais novo, ficámos quatro, e ele também acabou por montar uma oficina de reparações.

«A minha casa foi muitas vezes metralhada, depois refazíamos tudo de novo»

Contra tudo o que seria expectável a Elizabeth ficou em Angola. Nunca pensou em ir embora?
Não, nunca me passou pela cabeça ir embora, esta é a minha terra, eu nasci aqui e sempre acreditei que conseguiria fazer algo pelo meu país. Passei tempos difíceis, fiquei sozinha no Huambo, no tempo da guerra, ainda foram dez anos. Quando foi atacado pela UNITA, tive de levar a minha filha Andrea, que tinha dez meses, para o avião, para ser levada para Portugal pela Cruz Vermelha, e eu fiquei no Huambo. Estudei sempre em Angola, não acabei Agronomia, porque fui trabalhar a tempo inteiro. Tive uma passagem pela agricultura – fazia parte da Extensão Rural, um projeto alemão, encabeçado por Hermann August Pössinger, do Ministério da Agricultura – e pela indústria mineira. Quando chegou a Independência, obrigaram os brancos a ir para a África do Sul e eu não quis, fui a única a ficar, e transitei para o Banco Totta Santander, que era associado da Condiama.

E nunca teve medo?
Cheguei a estar num CIR (Centro de Instrução Revolucionária) do MPLA, que era um centro de formação político-militar. Éramos obrigados a estar na guerra. Quando saía do trabalho, tinha de estar de serviço, fazíamos patrulhamentos, aquilo era a nossa vida, andávamos fardados, a guerra existia de manhã à noite. A minha casa foi muitas vezes metralhada, depois refazíamos tudo de novo. Fui presa pela UNITA e pela FNLA, escapava, porque, como não abria a boca, pensavam que eu era soviética – clara e de olho azul, tinha de ser soviética. Habituei-me a viver um dia de cada vez, não olho para trás, sigo em frente. Sim, tive medo todos os dias, mas temos de viver. Imagine o que é ter 19 anos e dizerem-lhe que tem de ajudar a reconstruir o país. Acho que fiz e estou a fazer a minha parte. Vim para Luanda em 1992 e, quando o Huambo foi libertado a 8 de fevereiro, voltei. Fui das primeiras civis a entrar no Huambo para a reconstrução nacional. Depois acabei por me fixar em Luanda.

T. Cristina Freire
F. Nuno Almendra