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Carlos Feijó

«Queria ver uma Angola como um país desenvolvido»

PMMEDIA Pub.
Cresceu no bairro Rangel, um dos bairros pobres de Luanda. Viveu no Cazenga. Cresceu a ouvir os pais dizerem «tens de estudar para ser alguém amanhã». O futuro até podia ser incerto, mas Carlos Feijó estudou, e estudou muito, para se tornar numa das figuras mais reconhecidas da advocacia, da legislação e da política em Angola. Cedo se apaixonou pelo Direito. Ser legislador marcou a sua carreira, assim como ser professor catedrático. Constituiu leis, avaliou outras. Formou estudantes, o que o deixa orgulhoso. Escreveu obras científicas. Está em falta a sua biografia... Quem sabe esteja para breve. Enquanto investidor, a aposta recai sobre as áreas financeira e industrial. É o seu foco. Aos 60 anos, diz-nos que é «obcecado pelo sucesso». E, de certa forma, teve uma vida de sucesso. Mas... «o sucesso não cai do céu, sucesso sem trabalho só existe no dicionário». Se não fosse advogado, seria sociólogo e filósofo. Eis, aqui, Carlos, que, além de todas estas facetas, gosta de música, de jogar ténis e de ler.

Que lembranças tem da infância?
As lembranças de um menino que cresceu nos bairros pobres de Luanda, nomeadamente no bairro Rangel. Recordações mais pobres, onde o futuro era muito incerto.

E mesmo crescendo nesse bairro pobre, em que o futuro era incerto, onde é que foi buscar essa força toda para vencer na vida?
Bom, primeiro foi em casa, com os pais a dizerem «tens de estudar para ser alguém amanhã». Esta era a divisa. Depois vamos crescendo, vamos estudando. Essencialmente, foi o investimento no estudo. Apostei sempre na formação diferenciada e competitiva.   

E o que mais o marcou na infância?
Durante a minha infância, e a minha mãe diz isso, sempre fui uma pessoa muito isolada. 

Vivia no seu mundo?
Vivia no meu mundo, fantasiava, isolava-me muito. Não interagia muito com os outros, nem com os meus irmãos. Brincava sozinho, fantasiando, e criava a minha própria personagem. 

E na fase da adolescência?
A fase da adolescência é aquela fase mais terrível, em que a pessoa começa a ter um contacto maior com o mundo, com as pessoas. Mas, mesmo nessa fase, não perdi o foco nos estudos, o objetivo era ser alguém na vida.  

Como é que surge a advocacia?
Acho que nunca disse isto até agora. Em 1976, Angola tinha sido invadida por sul-africanos, no Sul, e, no Norte, os mercenários, de várias nacionalidades, também queriam tomar a capital, Luanda. Alguns deles foram capturados pelas forças governamentais. E realizou-se o famoso julgamento dos mercenários. Foi constituído um tribunal e foi designado um procurador, o Dr. Manuel Rui Monteiro, que fez a apresentação do livro acusatório. Gostei tanto da retórica, sobretudo da retórica argumentativa, que me apaixonei ali pelo Direito. Senti que aquele era o meu caminho. Aquele livro, aquela retórica, marcou-me até hoje. A partir dali passei a pensar em Direito. 

Ser legislador, fazer leis para serem cumpridas por todos, dá-lhe alguma sensação de poder ou, por outro lado, limita-lhe um pouco a sua liberdade?
Não dá a sensação de poder. Pode dar a sensação de um dever cumprido. Porque ser-se jurista e participar no processo de formação normativa, ou na formação da vontade normativa, tem muitas vantagens. Primeiro, conhece-se melhor o sentido e alcance das normas, o que facilmente chamamos de ser legislador material, onde se compreende melhor o espírito e o sentido do legislador formal e orgânico. Dá, sim, o poder maior de interpretação da vontade normativa ou da vontade do legislador.

«O que hoje é a melhor solução amanhã pode ser a pior solução»
E isso nunca limita a sua liberdade?
Eu é que não posso deixar que isso limite a minha liberdade, nos vários sentidos. Às vezes, ser-se legislador, mesmo de uma constituição ou de uma lei, dá essa vantagem de interpretação normativa, mas, ao mesmo tempo, dá-me a liberdade de poder avaliar se as soluções normativas encontradas, entretanto adotadas pelo legislador formal, pelo parlamento, são as melhores ou não. Portanto, não limita a minha liberdade, porque, mais tarde, por exemplo, posso dizer que aquela solução, que apresentámos, é uma solução errada, não funcionou. Isso pode acontecer. Porque a realidade da vida é muito mais rica do que a capacidade de previsão, seja do legislador material (quem escreve), seja de quem vai aplicar, ou de quem vai aprovar no final a lei. Portanto, não condiciona a minha liberdade, sobretudo na perspetiva de que, não dando certo, não posso continuar a defender aquela solução normativa, pois a realidade da vida veio mostrar que não foi a melhor. 

Quando acontece isso é visto como um fracasso?
Nunca consideraria um fracasso, pois era uma solução que provavelmente se julgava ser a melhor. Na realidade da vida não se consegue prever tudo.  E, às vezes, prevê-se erradamente. O que se deve ter é a capacidade de correção, quando se deteta a falha, mas nunca o sentimento de frustração, porque, naquele momento, era aquela a melhor solução. E, depois, é preciso separar a responsabilidade entre o legislador material e quem aprova, mas também é preciso não ser covarde e dizer «eu não estava lá». É preciso ter consciência de que o Direito tem de ser capturado sempre de uma realidade em dinâmica permanente. O que hoje é a melhor solução amanhã pode ser a pior solução. O Direito tem de acompanhar a realidade rica, viva, dinâmica e dialética.  

A sua vida resume-se a leis, responsabilidade e muito conhecimento. Alguma vez imaginou tornar-se conhecido pelo percurso profissional que construiu?
Nada acontece por acaso. Há sempre um investimento a fazer. São muitas horas de trabalho, muitas horas de investimento, muitas horas de investigação jurídica. Não há sábados, não há domingos, não há feriados. É muito trabalho, nada cai do céu. Diria que a área do conhecimento e da ciência, e no caso da ciência jurídica, é daqueles lugares onde não há cunhas. Como profissional, como ser humano, há três áreas onde, até agora, atuei com notoriedade. Exerci vários cargos de responsabilidade política e pública, do mais alto nível, e isto dá muita notoriedade. Uma outra parte da carreira, que nunca abandonei, é a carreira de docente. Comecei como monitor, para chegar a professor catedrático de Direito. E, embora continue na universidade, mantenho, simultaneamente, a atividade de consultor e de investidor. De maneiras que ando nestas três facetas da vida, embora já não tenha a responsabilidade política. Há 11 anos que estou fora. Eu procurei investir sempre no conhecimento, procurei encontrar fatores de competitividade que me tornassem diferente, uma espécie de obsessão pelo sucesso também. 

No que toca a investimentos, falamos de que áreas?
As áreas financeira e industrial são o meu foco.  

O que é que o tem marcado mais: a sua carreira política, a de professor, a de legislador ou a de advogado?
Todas marcam. Mas a que marca mais é a carreira de docente. Porque é ali onde considero ter sido muito mais produtivo. Na área política, podemos ter o orgulho do que fizemos bem e sentirmo-nos tristes pelo que não conseguimos realizar. A carreira de docente/jurídica é muito mais prazerosa. Primeiro, por ter uma maior independência intelectual; segundo, é ao investir e trabalhar na educação que se vê verdadeiramente que fizemos alguma coisa pelo futuro. É ali que se vê que o estudante de hoje se transformou em advogado, juiz, ministro, empresário de sucesso. É ali que vejo que afinal fiz alguma coisa de útil.  

Leciona há quantos anos?
Comecei a carreira de docente, como monitor da faculdade, em 1985. Ainda estudava, creio que estava no terceiro ano, e fui convidado para ser monitor de uma das cadeiras. Então, comecei ali a minha carreira de monitor; depois, passei para assistente estagiário; de seguida, para professor auxiliar; professor associado; e, por último, professor catedrático. 

Que mensagem deixaria hoje aos seus alunos?
A primeira mensagem é que sucesso não cai do céu, sucesso sem trabalho só existe no dicionário. Outra, é fazer um investimento cada vez maior na formação, para que se possa ser, sobretudo hoje em que a competição é mais global, competitivamente diferenciado.


«A Ordem dos Advogados tem de se afirmar em Angola como uma instituição forte»
Qual é a visão que tem do atual panorama da advocacia em Angola? E o que perspetiva para a profissão de advogado no futuro?
Esta pergunta era boa para ser respondida pelos candidatos à Ordem do Bastonário dos Advogados. Aliás, estamos justamente no processo de eleições, mas eu diria que a atividade do advogado, hoje, é uma atividade global. O primeiro desafio que temos na democracia é poder ser advogado tanto em Angola, como em qualquer parte do mundo. Temos de ter as habilidades e competências necessárias, até de domínio de línguas, que nos permitam ser advogados em qualquer lugar. Não sermos apenas advogados locais, voltarmo-nos para o investimento na formação. Temos de ser profissionais e devemos acompanhar a evolução científica da nossa profissão. Claro que, com a inteligência artificial, o papel do advogado poderá não ser o mesmo. 

Isso assusta-o?
Não me assusta, temos de nos ir adaptando, cada vez mais, para sermos competitivamente globais. A nossa ordem dos advogados tem de pensar no advogado global, e não apenas no advogado local, e criar todos os instrumentos funcionais e organizativos que permitam a um advogado angolano ser um advogado global e que não tenha medo da competição. 

Como um dos principais protagonistas do Direito em Angola, como vê a Ordem dos Advogados no país?
A nossa Ordem dos Advogados tem uma história começada do zero, num sistema político e administrativo que começou com pouco pluralismo, mas, hoje, a nossa ordem atingiu níveis de maturidade jurídica e institucional que são de assinalar. Houve efetivamente uma evolução, até mesmo uma evolução democrática. Temos regularmente realizado as eleições para o bastonário e têm sido processos eleitorais transparentes e pacíficos. Uma das coisas é a vantagem de ter advogados na comissão de redação da constituição, ter legitimidade ativa para ações sobre constitucionalidade e acesso ao tribunal constitucional, ao lado das entidades que tradicionalmente têm esse direito. A Ordem dos Advogados tem de se afirmar em Angola como uma instituição forte. 

Como é que caracteriza a vida política angolana nos dias de hoje?
Estou fora da política ativa desde 2012, quando abandonei o último cargo político, mas não sou uma pessoa politicamente neutra. E também não sou uma pessoa politicamente distante, até quanto mais não fosse por um exercício de cidadania, mas não é só isto. Caracterizar a vida política angolana... Bem, diria que nós estamos em Angola, num processo de progressão democrática. Hoje, a principal referência é que nós, em Angola, vivemos uma estabilidade política, uma estabilidade institucional, que é preciso a todo o custo preservar. Porque só com essa estabilidade política é que nós podemos atrair investimento privado. O investidor privado, nacional ou estrangeiro, faz sempre uma avaliação do risco político e, quando não há estabilidade, não há investimento privado, e, não havendo investimento privado, não há poupança, não há desenvolvimento, logo não se resolvem os problemas económicos e sociais do país. A caracterização política é de estabilidade, e há uma oposição política cada vez mais ativa, com novos métodos de atuação. Não há recurso a armas, há cada vez mais recurso aos meios constitucionais e legais de reivindicação política. 

Como é que vê Angola daqui a 30 anos?
Nós, em Angola, temos de ser ambiciosos. Tudo o que se quer até 2050/60, até para estar em sintonia com a perspetiva da união africana, está muito bem aliado. Bom, queria ver uma Angola como um país desenvolvido, temos tudo para ser um país desenvolvido, com todas as características dos países desenvolvidos, e não mais um país subdesenvolvido. Um país desenvolvido não só em palavra, mas sim em todas as dimensões: económica, cultural, política e social. 

A lusofonia, a CPLP, continua a ser uma organização geoestratégica para os países intervenientes?
Já disse publicamente que não. Num mundo onde a geopolítica, a geoestratégia é cada vez mais múltipla, acho difícil estas organizações terem uma posição geoestratégica forte, porque cada uma delas tem blocos regionais onde, provavelmente, os valores, os interesses geoestratégicos podem não ser convergentes.  

Mas então o que deve mudar nesse sentido? Qual a estratégia?
Simples. Cada país deve fazer o melhor para ser um país desenvolvido e logo teremos convergências maiores. Simples como isto, se os países tiverem diferentes níveis de desenvolvimento económico, social e político, dificilmente terão interesses convergentes. Agora, se todos formos fortes, desenvolvidos, mais facilmente podemos fazer valer o nosso interesse. É difícil fazer convergência quando se tem níveis de desenvolvimento completamente diferentes, e situados em geografias completamente diferentes. Preocupo-me mais que cada um faça melhor o seu próprio papel e dê o que pode nesse seu desenvolvimento à comunidade.

«Vivemos uma estabilidade política, uma estabilidade institucional, que é preciso a todo o custo preservar»
Faz parte da história de Angola. Como é que um dia gostava que o recordassem?
Não gostava de ser recordado; no fundo, sou recordado, hoje, pelo reconhecimento, sobretudo, da carreira académica. Quando encontro um aluno e ele me diz: «Você foi meu professor; talvez já não me conheça, mas o seu ensino foi determinante para eu estar aqui», é neste sentido que quero ser recordado. Numa só frase, gostaria de ser recordado como uma pessoa que ajudou a formar pessoas que singraram na vida. 

Já publicou várias obras científicas. O que é que ainda falta escrever?
Quando se é professor catedrático de Direito, ou catedrático de outra área, a primeira obrigação é publicar obras científicas. Eu procuro publicar uma obra, de relevo científico, a cada ano. O ano passado publiquei quatro; este ano, estou a terminar uma obra sobre Teoria Geral do Procedimento Administrativo, e estou a fazer outra sobre Responsabilidade Extracontratual do Estado, que está pronta, só não será publicada este ano.  

Faltaria publicar uma biografia?
Não sei se uma biografia política, ou uma biografia sobre a minha vida. Estou sob pressão para publicar uma biografia. São estas duas perspetivas. Não sei o que vou fazer. 

Qual é a palavra que o define?
Obcecado (pelo sucesso). 

Fez 60 anos este ano, quais são os seus planos a médio prazo?
Sobretudo dois: ao nível da carreira académica, ir mais longe, e, ao nível pessoal, investir, cada vez mais, na área financeira e industrial.

Parar, nunca?
É difícil. Não estou cansado para descansar (risos). 

Conseguiu sempre conciliar a vida pessoal com a profissional?
Sempre. Mas a vida pessoal ficou sempre mais prejudicada.  

Qual é o seu hobby?
O meu hobby é ouvir música. 

Que género de música?
Todos. Mas as músicas mais marcantes são as músicas angolanas do Semba

São mais marcantes as letras?
Sim. Músicas do Paulo Flores, Yola Semedo, Yuri da Cunha. Depois, tem um outro tipo de música, que não é o Semba, mas anda ali próximo, que é do Prodígio, que tem uma capacidade de escrever músicas que refletem a realidade e o dia a dia incrível. 

Pratica desporto?
Jogo ténis. Aos fins de semana. Há uns 12 anos. Uma forma de descomprimir, de distrair.

Que livros é que o marcaram?
Os livros de Direito não se podem contar. Mas leio de tudo um pouco, como biografias. Agora estou a ler Personalidade e Poder. É um livro que explica a forma como as grandes personalidades políticas, de forma voluntária ou involuntária, programada ou não programada, determinam a História. Por exemplo, Napoleão, será que ele programou fazer parte da História ou foram os acontecimentos que o fizeram? 

Se não fosse advogado, o que é que gostaria de ser?
Ah, não sei. Seria sociólogo e filósofo. Filósofo, porque é uma forma de especulação da vida em que vale a pena investir. É um pensamento de tal modo construído, lógico, sistematizado – não que o Direito não seja –, que se torna um manual de vida. 

Algum dos seus filhos seguiu as suas passadas?
A minha filha mais velha é advogada, em Portugal.
Maria Cruz
T. Maria Cruz
F. Nuno Almendra